Menos de meio ano separa dois extremos vividos por moradores da região Norte do Brasil. Em outubro de 2024, o rio Madeira, em Porto Velho (RO), registrou o menor nível da história: apenas 19 centímetros de profundidade. Nesta sexta-feira (4), ele atingiu 16,67 metros — uma elevação drástica, reflexo direto do chamado Inverno Amazônico, período marcado por fortes chuvas na região.
O fenômeno ocorre geralmente entre dezembro e maio, quando a Zona de Convergência Intertropical (ZCIT) — um cinturão de nuvens formado pela convergência dos ventos alísios — intensifica a precipitação nas áreas equatoriais. Com isso, os rios da bacia amazônica rapidamente se elevam. Apesar de as cheias serem comuns nessa época do ano, os especialistas alertam para a frequência e intensidade cada vez maiores das variações nos níveis dos rios.
“Essas mudanças abruptas indicam um possível agravamento do ciclo hidrológico da região”, explica Marcos Suassuna, engenheiro hidrólogo do Serviço Geológico do Brasil (SGB).
Impactos em cadeia: de Rondônia ao Acre
Outros rios também apresentaram comportamentos extremos. O rio Machado, por exemplo, saltou de 6,04 metros no fim de 2024 para 11,34 metros no início de 2025. Em Santa Luzia D’Oeste (RO), o acesso às escolas da zona rural foi comprometido, levando à suspensão das aulas por tempo indeterminado.
No Acre, o rio que leva o mesmo nome do estado transbordou e afetou mais de 31 mil pessoas em Rio Branco. Muitas famílias precisaram se abrigar no Parque de Exposições Wildy Viana. Com a redução do nível da água nos últimos dias, algumas delas começaram a retornar para suas casas.
Já no Pará, a situação também é preocupante. O transbordamento do rio Xingu levou o governo federal a decretar estado de emergência em São Félix do Xingu. Rios como o Tocantins e o Itacaiúnas também ultrapassaram os limites e deixaram comunidades isoladas em municípios como Marabá e Oeiras do Pará.
No Amazonas, cinco grandes rios superaram os níveis registrados no mesmo período do ano passado, colocando 23 municípios em alerta. Apesar disso, o SGB estima que as cheias de 2025 não devem ultrapassar os recordes históricos.
Ribeirinhos sentem na pele as mudanças
Para quem vive às margens dos rios, como pescadores e agricultores, essas mudanças drásticas no nível das águas têm gerado incertezas e prejuízos. A ribeirinha Emanuele Rodrigues, de São Félix do Xingu, relatou que a cheia isolou diversas famílias. “Só conseguimos sair com ajuda de canoas ou jangadas improvisadas”, contou.
Leia Garcia, outra moradora da região, lamentou as dificuldades enfrentadas pelos filhos para chegar à escola. “Quando chove muito, eles não conseguem ir. As estradas ficam intransitáveis.”
O contraste com a seca vivida no ano passado é sentido por moradores como Maria de Fátima, da comunidade Terra Firme, em Porto Velho. “Na estiagem, faltava peixe e água para a lavoura. Agora, com a cheia, estamos perdendo a produção porque as águas invadem tudo.”
Segundo a Defesa Civil de Porto Velho, ao menos 29 comunidades já foram diretamente afetadas pela cheia do rio Madeira. Outras 36 estão em estado de alerta. Na BR-425, o volume da água é tanto que o asfalto praticamente desapareceu.
Crise ambiental e consequências humanas
As variações extremas dos rios não afetam apenas a rotina das comunidades. Há também sérios impactos ambientais. “As cheias inesperadas comprometem a navegação, a agricultura familiar e o saneamento, além de aumentarem o risco de erosão e incêndios florestais”, alerta o engenheiro Marcus Suassuna.
De acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), essas mudanças também estão ligadas a fenômenos globais, como El Niño e La Niña. O primeiro provoca secas ao aquecer as águas do Pacífico. Já o segundo, que se manifestou no final de 2024, resfria essas águas e estimula a formação de chuvas, elevando rapidamente os níveis dos rios.
O papel do ser humano na crise climática
Para a etnoclimatologista Alba Rodrigues, a ação humana tem intensificado os desequilíbrios ambientais. “Desmatamento e queimadas na Amazônia afetam a capacidade da floresta de reter carbono e de regular o ciclo das chuvas”, afirmou. Segundo ela, a destruição da cobertura vegetal compromete todo o sistema de umidade da região.
“Se esse ciclo natural não é respeitado, quem paga o preço são as famílias que vivem da terra e da água”, disse a pesquisadora.
O carpinteiro Raimundo Freitas do Nascimento, morador da região amazônica, resume o drama enfrentado por milhares: “Se a água continuar alta, vamos ter que seguir vivendo nas casas dos outros. O risco é perder tudo.”
Sensação
Vento
Umidade