Lá pela quinta série, Bill Gates, um menino franzino de nem 30 quilos, foi levado ao consultório de uma fonoaudióloga para dar um jeito em sua voz estridente. Seus pais ouviram da especialista que ele era “retardado”, como jamais se diria hoje, e que deveria repetir de ano.
O insólito episódio é narrado em detalhes pelo próprio Gates, hoje bilionário, filantropo e chegando aos 70 anos de idade, em seu novo livro, “Código-fonte: como tudo começou”, que será lançado globalmente terça-feira.
Na publicação, o magnata fala pela primeira vez da possibilidade de estar no que se considera espectro autista, um assunto impensável à época de seus anos escolares. Também relata dificuldades domésticas com os pais e os anos iniciais da Microsoft, empresa que ergueu ao lado do amigo Paul Allen (1953-2018), às custas de todo seu tempo disponível, hábitos de saúde e higiene, além da graduação na reputada Harvard, que largou.
Bill Gates atendeu por videochamada em um dos primeiros dias de janeiro, diretamente de Palm Springs, na Califórnia, onde fugia das baixas temperaturas do inverno dos EUA. Na conversa, comentou a possibilidade de ser neurodivergente, da dificuldade que as telas impõem à infância do século XXI, da preocupação com a democracia americana sob Donald Trump, do negacionismo científico e de ter se tornado um alvo preferencial das fake news: “Eu não diria que escrever minha autobiografia ia reduzir o número de coisas loucas que as pessoas falam sobre mim por aí”.
O que te levou a escrever suas memórias?
Estou prestes a fazer 70 anos, a Microsoft fará seu aniversário de 50 anos e a Fundação Gates, 25. Achei que selecionar essas histórias do passado e dar o devido crédito aos meus pais e pessoas fundamentais em minha vida, como Kent Evans (um amigo que morreu precocemente) e Paul Allen (também fundador da Microsoft, morto em 2018), seria uma coisa boa. Há um ano e meio tive essa ideia de escrever um livro sobre esses primeiros 25 anos de vida. Nós próximos dois ou três anos haverá, ainda, outro livro focado na Microsoft e outro em doar tudo.
O seu nome está sob numerosas fake news. Contar sua própria história é uma forma de responder a isso?
Não diria que escrever minha autobiografia ia reduzir o número de coisas loucas que as pessoas falam sobre mim por aí. Acho que vale a pena explicar para as pessoas que são mente aberta como tudo aconteceu. Quem for um pouco mais aberto e equilibrado vai entender minhas motivações, além da incrível sorte que tive.
No livro há o seguinte trecho: “Se eu estivesse crescendo nos dias de hoje, provavelmente seria diagnosticado como alguém no espectro autista”. Quando soube que existia essa possibilidade?
Eu já era adulto quando alguém mencionou isso para mim. Fui refletindo que minhas habilidades sociais se desenvolveram muito lentamente, sempre fui meio desajeitado. A intensidade que eu tinha dentro de mim, como estudante, fazia com que as coisas fossem mais difíceis. Alguns professores falavam que eu era tão brilhante que deveria ser promovido de série. Outros, porém, falavam que eu era imaturo demais e, por isso, deveria repetir de ano. Tudo era muito contraditório. Nunca tive diagnóstico, ou tomei medicamentos (psiquiátricos), talvez dissessem que eu tinha TDAH ou estivesse no espectro autista.
Essa descoberta mudou a maneira com que você se enxerga?
Até hoje percebo que me balanço um pouco quando estou refletindo sobre certos assuntos, isso é o que chamam de “stimming” (um tipo de comportamento do autismo, que ajuda a pessoa no espectro a lidar com as emoções). Acho que saber disso me ajuda a entender minhas características pessoais. Bem, felizmente hoje em dia as pessoas veem isso, por vezes, como uma benção, desde que seja possível moldar do jeito certo. No meu caso acho foi uma chave para minhas habilidades, para eu ser louco por softwares.
Será que se tivesse um celular em mãos na infância, teria o mesmo ímpeto de criação?
Essa habilidade que tenho de ficar fascinado e tentar aprender tudo de um tema, ver como aquilo se encaixa com outras coisas é muito útil para mim, celebro hoje ter essa diferença. Agora, até eu tenho que exercitar alguma disciplina quando estou sentado on-line e posso ir para diversas direções. Tem dias em que leio um monte de coisas que provavelmente são uma perda de tempo. Para uma criança, isso é muito mais difícil. Entre meus filhos (Jennifer, Rory e Phoebe), apenas a mais nova teve dificuldade com as redes sociais, achou um pouco difícil de lidar.
O senhor passou por terapia para lidar com os conflitos domésticos com seus pais e funcionou. Acha que a Inteligência Artificial (IA) poderá substituir o terapeuta?
Eu diria que as IAs não estão nem um pouco perto do que o Dr. Cressey (o terapeuta) me ofereceu naquele momento. Ele sabia que tínhamos que construir uma forte relação. Também disse que as brigas com meus pais eram uma perda de tempo porque eles estavam ao meu lado. As IAs não estão nem perto de ter a sutileza que ele teve. Agora, é preciso considerar que algumas pessoas estão mais abertas para falar com um software, disponível 24 horas. Acho que, nos próximos anos, a capacidade de ajudar pessoas com problemas de saúde mental envolverá a inteligência artificial. Isso conforme for possível desenvolver melhor (esses serviços) e a possibilidade de escalar para um humano caso aconteça alguma situação aguda, como quando a pessoa disser que está muito deprimida ou está tendo pensamentos preocupantes.
Embora tenha estagiado no Congresso dos Estados Unidos, o senhor nunca engajou na vida pública. Por quê?
Eu tinha uma habilidade única nas minhas mãos, tanto escrevendo códigos quanto contratando gente que tivesse uma estratégia para o software. Sinto que trabalhando em uma casa legisladora eu não seria tão bem-sucedido ou teria tanta chance de impulsionar mudanças. Me preocupo, porém, que pessoas qualificadas não escolham esse caminho (da política), precisamos delas. Eu não me vejo nessa arena, só que precisamos de ótimos políticos, isso é muitíssimo importante, já que enfrentamos um cenário de polarização e tentamos moldar a IA para obter seus benefícios sem malefícios. Estou feliz no meu trabalho, ajudando a Microsoft em algumas coisas e com foco no clima. Estarei aí no Brasil para a COP 30, e estou ansioso.
Paul Allen não foi tão educado ao descrever o senhor em seu livro de memórias, qual a imagem que gostaria que os leitores tivessem do seu ex-sócio?
Paul foi meu parceiro nos primeiros cinco anos (de Microsoft). Depois ele adoece e sai. Não tenho nada de mal para falar de Paul. Ele não gostava de gerir pessoas como eu, nem de trabalhar o tempo todo, como eu. Mas ofereceu a visão e a estratégia (da empresa), um gênio.
Como se vê aos 70 anos?
Tenho que admitir que, quando jovem, não pensava em pessoas com 70 anos como capazes de contribuir com algo que estivesse acontecendo. A indústria de computadores era muito jovem e nós consideramos velhas as pessoas com 40 anos. Me sinto muito sortudo com meu trabalho na Microsoft e com Satya (Nadella, CEO da empresa). Meu maior foco é na Fundação Gates, onde estamos aprendendo sobre desnutrição e na erradicação da poliomielite de malária. Tenho metas ambiciosas.
A nova gestão de saúde nos EUA tende a apoiar o discurso antivacina e a anticiência. E agora?
Desde o ano 2000 até agora, o progresso na saúde global tem sido incrivelmente bom. Foi reduzido pela metade o número de mortes por HIV e tuberculose. O número de crianças que morrem antes dos 5 anos passou de mais de dez milhões para menos de cinco milhões. Fizemos parcerias, especialmente com os países ricos, incluindo os EUA, a Europa, o Japão, e (desse modo) fornecemos vacinas gratuitas. As vacinas deveriam ser consideradas como uma das maiores conquistas da humanidade. Infelizmente, os governos ricos no momento estão com orçamentos muito apertados, considerando a guerra na Ucrânia e o envelhecimento da população. E, por vezes, os governos de direita viram as costas para a possibilidade de ajudar países mais pobres. Eles não veem o benefício moral estratégico de oferecer ajuda externa. Eu me vejo tendo que sair e falar e falar a esses países sobre os benefícios dessas atividades. E que, ao ajudar outras nações a serem estáveis, não se atinge apenas uma questão moral, mas é ótimo para a estabilidade e para a economia global.
O movimento antivacina te considera um alvo, não é?
É meio impressionante que tivemos uma pandemia onde as vacinas literalmente salvaram milhões de vidas. E ainda assim, mais pessoas estão confusas sobre vacinas do que estavam antes da pandemia. É o oposto do que eu esperava. Eu realmente acredito que a verdade sobre as vacinas eventualmente será bem compreendida.
A atual mudança no governo dos Estados Unidos levanta sua preocupação sobre a democracia do seu país?
Absolutamente. A democracia é algo um pouco frágil. As eleições e a integridade desse processo são muito importantes. Há dez anos eu me preocupava muito com a democracia no mundo, mas pouco com a dos Estados Unidos. Agora, ainda estou otimista para que não teremos um problema, mas vejo (a democracia) mais frágil do que eu esperava. Pessoas como (o escritor israelense Yuval Noah) Harari já escreveram anteriormente sobre como a democracia é algo incrível, mas complexa de garantir que seja totalmente mantida.
O que espera da COP 30, no Brasil, que já disse que irá comparecer?
Vejo clima como algo muitíssimo importante. Há uma certa mudança de foco em alguns governos de direita, incluindo os EUA, de colocar menos ênfase no clima. Minha teoria é que precisamos acelerar a inovação e ter tecnologias baratas que sejam muito verdes, como novas formas de fazer cimento e aço. Precisamos também de adaptações como dar aos agricultores pobres melhores sementes e conselhos sobre o clima. Quero ir à COP para lembrar às pessoas que essa questão (das adaptções) é importante, porque mesmo nas conferências do clima esse assunto não é tão forte. Acredito que com os incríveis valores que Lula evidencia, de pensar sobre a justiça envolvida nesse processo, esse tema receberá mais atenção do que em outras conferências. Acho que essa reunião será muito importante.
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