Publicada em 04/08/2023 ás 12:18:21
Em um áudio que viralizou no Tiktok em julho, uma Elis
Regina furiosa dizia que preferia cantar dentro de uma fábrica a se apresentar
no Riocentro, no Rio de Janeiro, onde haveria um show alusivo ao 1º de Maio,
Dia do Trabalho.
"Eu vou cantar numa fábrica dia 1º de Maio. (...) o
Mario Lago já descolou essa fábrica. Vou levar Saudade do Brasil para dentro de
uma fábrica. (...) Riocentro não tem operário que consiga chegar porque
operário não tem carro para ir ao Riocentro e nem 400 paus para pagar ingresso.
Vamos parar de palhaçada, porra. (...) Eu não vou a show apresentado por
patrão", disse em um trecho.
Em pouco mais de um minuto e meio, Elis critica a
elitização da música: "Cadê a Angela Maria? Cadê o Jamelão? Cadê o Agnaldo
Timóteo? Por que essa elitização, c******?"
A entrevista se tornou viral como contraponto a uma propaganda em que uma Elis Regina —recriada por inteligência artificial— canta com a filha Maria Rita "Como nossos pais", clássico de Belchior que fez sucesso nos anos 1970 na voz de Elis. O comercial faz alusão aos 70 anos da Volkswagen no Brasil.
Mas, em tempos de fake news, ficou a dúvida: será que Elis
deu de fato a tal entrevista?
Não havia nenhum registro confiável na internet de que Elis
de fato havia falado. Um dos primeiros a ser consultados foi João Marcello
Bôscoli, um dos filhos da cantora. "A veracidade, se realmente é ela, eu
acredito que seja, mas poxa vida, hoje em dia, com todas as técnicas, não é uma
coisa que eu tenha certeza", disse.
Bôscoli tinha tido contato pela primeira vez com a
entrevista da mãe havia "dois ou três anos". Ele indicou duas pessoas
da sua confiança e contemporâneas de Elis, mas ambas tampouco tinham detalhes.
Mestre em Linguística pela UERJ e doutora em Linguística
Aplicada e Estudos da Linguagem pela PUC-SP, a perita e fonoaudióloga forense
Renata Christina Vieira comparou o áudio do Youtube (maior que o áudio viral)
com entrevistas públicas de Elis Regina. Ela concluiu que o resultado
"suporta fortemente" a hipótese de que a voz seja de Elis Regina.
Uma pesquisa no Google pelas expressões usadas na
entrevista mostrou que uma tese de doutorado reproduzia a entrevista. Autor da
tese, Robson Pereira da Silva mencionou a fala da cantora no trabalho
"Elis Regina: dou o tiro, quem mata é Deus - Performances da cena e da
crítica na construção de uma intérprete do Brasil (1964-1978)", apresentada
na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). "Não se trata de uma
entrevista publicada. Ela me chegou via áudio", diz.
À reportagem, Robson deu a primeira pista: a entrevista era
real e havia sido concedida em 1980, no Canecão, extinta e tradicional casa de
shows na Zona Sul do Rio, para um grupo de repórteres. Sua indicação reforçou a
credibilidade para uma versão mais ampla da entrevista, disponível em um canal
do Youtube.
O dono do canal, o poeta e escritor Fernando Graça, por sua
vez, havia retirado a entrevista de uma página no Facebook chamada
"Analisando Elis Regina", formada por fãs da cantora. Fernando deu
outra pista: um conhecido dele, o cantor Marco Tonio Muylaert, tinha feito
menção, numa conversa, a uma fita com a entrevista de Elis. Uma possível
segunda pista. Graça forneceu o contato de Muylaert.
Muylaert então revelou ter participado como repórter da
entrevista -- e que não se lembrava onde o conteúdo tinha sido publicado. Na
ocasião, anos 1980, ele trabalhava para publicações da editora Bloch, entre as
quais "Mulher de Hoje" e "Sétimo Céu".
E deu o contexto da fala da Elis: ela estava irritada por
ocasião da prisão de Lula dias antes. O atual presidente era sindicalista e
havia sido preso em 19 de abril de 1980, pelo regime militar de então, quando
liderava negociações entre trabalhadores e empresários por aumentos salariais
no ABC. Ele foi solto 31 dias depois.
"Essa fita foi dentro do Canecão, em 81, eu não sei se
era 80. Foi durante a temporada do Saudade do Brasil. E o Lula tinha sido preso,
alguma coisa lá do ABC. Tanto que durante o show a Elis falava assim: 'Ao
pessoal do A, do B e do C'. E ela estava muito exaltada por causa da prisão do
Lula. Ele era apenas do ABC, ele era um sindicalista. Ela ficou muito
incomodada com isso. Ela falou: 'Agora vão soltar os cachorros em cima da
gente.' Era repressão pura. Ela ficou muito incomodada. Mas ela xingou todos os
palavrões do mundo", afirmou.
Faltava então o registro físico da entrevista, para provar
que a conversa de fato havia existido. Césio Vital Gaudereto é colecionador de
revistas antigas e mantém o blog "Tudo Isso é TV", onde coloca
reproduções de publicações de sucesso nos anos 1970 e 1980.
Em uma busca pela edição de maio de 1980 da Sétimo Céu, um
jovem e sorridente Kadu Moliterno posava na capa em uma reportagem que
anunciava o amor dele por Glória Pires. Embaixo, ainda na capa, uma chamada
exibia: "Revelações surpreendentes de Elis Regina".
Havia no blog apenas a imagem em formato JPG da revista —o
que impedia que ela aparecesse em mecanismos de busca quando a procura era
feita pelas palavras-chave da entrevista.
Gaudereto indicou o dono da revista em papel, Henrique
Uessler, que a folheou para a reportagem, durante uma chamada de vídeo, até a
página da entrevista —indicando não se tratar de montagem o print do blog.
No papo, a entrevista com Elis reproduzia vários trechos
citados no áudio que viralizou no Tiktok, como quando diz que não iria "a
show apresentado por patrão" e defendia a realização de apresentações em
fábricas para os operários.
Era o fim da busca: a entrevista era real.
Por Diario da Feira
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